A estória dos leitores de tela

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Você provavelmente está lendo este artigo sentado no sofá ou na cama, vestindo uma roupa bem fuleira. Muito provavelmente está torcendo para que este texto não seja muito longo. Normal, afinal, nos dias de hoje, ninguém tem mais saco para textões. Todo mundo prefere “textículos”!

Se você for uma pessoa com deficiência visual, você tem a possibilidade de ler meu texto através de um leitor de tela, seja ele o JAWS, NVDA, VoiceOver, Talkback ou qualquer outro bagulho falante que você tenha. Essa sensação de “fazer parte”, te faz absorver, inclusive, o comportamento padrão do internauta, ou seja, nada muito longo, consumo rápido, fácil e preferencialmente sem usar muito o cérebro.

Relaxa, essa introdução, um tanto quanto provocativa, foi apenas para te posicionar nos dias atuais e, quem sabe, fazer você refletir se caso o avanço dos leitores de tela e da tecnologia assistiva não tivesse chegado onde chegou.

Mas você já parou para se perguntar como, quando e onde surgiu o primeiro leitor de tela? Pois bem, eu tive essa curiosidade e conto pra você!

O texto abaixo possui diálogos fictícios, mas o contexto histórico é baseado em fatos reais.

A Inquietude de Bons Matemáticos

O ano é 1984. O Dr. Jim Thatcher está indo em direção à sala de Jesse Wright. Ambos trabalham na IBM. Se cumprimentam e começam a falar em matemática, ciência da computação, semântica e dados abstratos. O tipo de conversa que faria você, nos dias de hoje, sacar o celular e ver se alguém te mandou nudes pelo Whatsapp.

Jim se aproxima de Jesse e fala:

– Dr. Wright, como vai?

Jesse estava com um semblante diferente. Àquele semblante que a gente fica quando passa um carro tocando funk, em um volume equivalente ao Monte Everest.

– Estou preocupado com essa evolução tecnológica. Ela me parece um tanto quanto desastrosa para a comunidade cega.

O Dr. Jesse Wright é cego. A IBM é uma das primeiras grandes empresas de tecnologia a se preocupar com a diversidade de funcionários. No século passado não era incomum encontrar funcionários negros, mulheres e pessoas com deficiência nos corredores da empresa, enquanto que outras empresas ainda nem pensavam nisso.

Jim refuta-o imediatamente.

– Mas em muitos casos o oposto é verdadeiro.

Jim não disse aquilo de bobeira, afinal ele era um dos primeiros do mundo a receber um PhD em Ciências da Computação pela Universidade de Michigan em 1963. Ou seja, o cara manjava dos paranauê quando o assunto era tecnologia.

Jim continua.

– A empresa que trabalhamos é pioneira em inovações tecnológicas e inclusão social. Talvez com o nosso conhecimento, possamos usar isso a nosso favor, fazendo com que os avanços tecnológicos sejam bons para todos, sem distinção.

O semblante do Dr. Wright mudou para algo muito parecido com um torcedor da Alemanha após o sétimo gol.

Enquanto falava, o Dr. Thatcher olhava para um dos terminais na sala onde o Dr. Wright trabalhava.

Em 1984 os computadores eram máquinas muito grandes, com vários terminais conectados a ela. Esses terminais eram algo equivalente à um monitor e um teclado. Obviamente, tais terminais não eram acessíveis para pessoas com deficiência visual.

Jesse se levanta para beber água em um bebedouro próximo. Ele conhecia muito bem o ambiente e por isso dispensou a bengala. No caminho esbarra na mesa onde estava um terminal e toca sem querer no teclado, apertando com o dedo indicador a tecla Enter.

Nesse momento, se entreolharam sensivelmente – o máximo de sensibilidade que dois matemáticos trabalhando em uma empresa de tecnologia poderiam ser – e se conectam mentalmente.

Dr. Thatcher olhando para aquela cena, visualizou uma equação matemática. Normalmente sua mente funcionava assim.

Dr. Jesse Wright + Terminal ≠ Acessibilidade!

Jesse e Jim sabiam naquele momento o que precisava ser feito.

– Precisamos criar um sistema de som para cegos nesse terminal – disse Jim empolgadão com o futuro desafio.

– Sistema de sons para cegos é um nome muito merda! – disse Jesse com cara feia.

– E que tal Terminal Falante?

– Não!

– Terminal com voz para cegos? Terminal Voz? Sistema falante em terminais IBM? Leitor de terminais? Cegueira Terminal?

– Não, não, não! E esse Cegueira Terminal que você falou aí, é o pior de todos!

Jesse estava com a boca mais seca que o Sistema Cantareira, nem tanto pela sede e sim por ficar discutindo com Jim por horas de como chamariam o tal sistema de voz para cegos.

Jesse indo em direção ao bebedouro disse:

– Jim, não importa o nome que vamos dar para esse sistema que lê a tela para cegos. O que importa…

Jesse foi bruscamente interrompido por Jim, como um coito adolescente flagrado pelos pais.

– É isso mano! Leitor de tela para cegos em terminais IBM!

– Humm, parece bom, mas ainda está longo. Que tal, apenas, Leitor de tela IBM?

O Leitor de tela da IBM

Já se passaram alguns meses desde que a dupla sertaneja Jesse e Jim começaram a trabalhar no IBM Screen Reader (esse era o nome em inglês). Eles estavam muito empolgados com a possibilidade do computador falar, mas não tinham a menor ideia do que aquele projeto poderia implicar positivamente na vida de milhares de pessoas com deficiência visual ao redor do mundo. Eles estavam encarando aquilo como um desafio e não estavam pensando naquilo como um produto ou algo parecido.

Os computadores da época não tinham sistemas baseados em interface gráfica, ou seja, nada de apontar e clicar. Naquela época, o sistema dos computadores era o DOS, ou seja, tudo era feito através de linhas de comando.

Jesse está caminhando com passos rápidos, entra na sala de Jim, deixa sua bengala encostada na mesa, joga sua pasta cheia de material em braile e senta-se perto de seu parceiro de projeto.

O Dr. Wright estava especialmente ansioso naquele momento. Ambos estavam trabalhando naquele projeto há quase dois anos.

– O que você está prestes a presenciar pode mudar a sua vida e a de muitas outras pessoas. Talvez em 20 ou 30 anos, as pessoas com deficiência visual, usarão sistemas digitais com auxílio de síntese de voz e não se darão conta do nosso pioneirismo e do nosso esforço sem precedentes – disse Jim se imaginando como líder de uma tropa em um filme de guerra.

Jesse já não aguentava mais aquele blábláblá.

– Pelo amor de Euler, me mostre logo essa parada aí!

O Dr. Thatcher posiciona o Dr. Wright de frente para o terminal, mostra-o onde está o Enter. Ambos fecham os olhos. Jesse aperta a tecla e o terminal diz com voz sintética:

– Papai!

Ricardo De Melo
WRITTEN BY

Ricardo De Melo

Web Designer, Especialista em SEO , WordPress, E-commerce, Marketing Digital e Acessibilidade Web. Atualmente, trabalha como Web Designer na instituição LARAMARA. Nessa instituição, também atuou como professor de informática acessível e tecnologias assistivas para pessoas com deficiência visual por 7 anos. Idealizador dos blogs: O AMPLIADOR de ideias e HEINRIC

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20 comentários em “A estória dos leitores de tela

  1. Eu sou cego não sabia dessa história

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